VALTER CAFFER

sábado, 24 de março de 2012

O PÁSSARO PRETO AMARELO












                                          







  1.                                                   


                              Olá; sou Valter Caffer, e tenho  56 anos, e uma biografia bem comum: Infância difícil, com poucos recursos financeiros, adolescência cheia de traumas, depois família, trabalho, faculdade, sucesso profissional, alegrias, conquistas; outras vezes, decepções, tristezas, fracassos, e todas as emoções que afloram numa existência repleta de idas e voltas, de altos e baixos, de acertos e erros.  
Mas o foco dessa narrativa não é essa epopéia fantástica chamada viver, porém a sobrevivência, ou a sobrevida, após   eu haver adquirido uma leucemia do tipo mielóide crônica, com a qual tenho travado contínuas batalhas desde 2002.
A simples menção da palavra leucemia é assustadora para a  maioria das pessoas, principalmente porque sua manifestação nas formas mais agudas é severa e rigorosa, matando sistematicamente com muita rapidez. É o caso do deputado Eneas, e também do ex-presidente Itamar Franco, que foram acometidos recentemente e tiveram um fim bastante rápido. Menos   mal para mim; a que me acometeu é do tipo crônica, ou seja, se instala na medula óssea de maneira silenciosa e imperceptível, e depois aos poucos vai mostrando os seus sintomas enquanto evolui para estágios cada vez mais agudos.
                            Hoje, após 10 anos de tratamento, minha doença já avançou muitos desses estágios,estando  hoje em uma fase bastante complicada. Não tenho    conhecimento o bastante para decifrar as implicações hemato genéticas da leucemia, mas para que se entenda como ela atua  posso afirmar que é uma doença do tipo citogenético, que se  instala nos cromossomos das células sanguíneas quando fabricadas na medula óssea. Ali ela provoca mutações na ordem dos cromossomos. A primeira mutação é a 9:22, que da origem a uma enzima denominada tirino-quinase. A célula sanguínea recem criada, portadora dessa enzima não se torna
adulta, e vai para a corrente sanguínea sem poder desempenhar seu papel de célula adulta. Daí ser muito comum se ouvir ao ser diagnosticada a leucemia, que a pessoa tem muitas células jovens,  ou imaturas no sangue periférico. Na evolução da doença outras mutações ocorrem nos cromossomos, todas produzindo a enzima tirino-quinase, provocando o envio de um número cada vez maior de células imaturas para a corrente sanguínea. 
                               Em 2002, quando me tornei portador desse mal, o tratamento ainda era bastante precário,  quase todo à base de Interferon-Alfa, medicamento que causa   tantos efeitos colaterais muito severos, que geralmente o doente se sente pior com ele que com a doença. Depois veio a nova geração de inibidores de tirino-quinase, que em 95% dos pacientes conseguem inibir o avanço da doença, oferecendo a   estes uma sobrevida até bem aceitável.  Em meu caso esses inibidores não atuaram sobre a doença, ou não inibiram seu avanço, até que adquiri a mutação T 315I, que produz uma      outra enzima, a Aurora-quinase, para a qual ainda não existe   nenhum medicamento no Brasil.
                               Algumas pesquisas com inibidores de Aurora-quinase vem sendo desenvolvidas na Europa e Estados Unidos, e estou na fila de doentes que aguardam a chegada desses medicamentos ao Brasil; enquanto isso vou me medicando com drogas paliativas, que combatem apenas o aumento exagerado de leucócitos, sem atuar sobre a doença.
                                Devido à baixa eficácia desses  medicamentos, e à minha inépcia em perceber e avaliar a gravidade de determinados sintomas, tive uma abrupta crise que me trouxe às pressas ao Hospital de Base em São José do Rio Preto onde se deram os episódios que narro adiante.


                                Ali, embaixo da gigantesca, talvez  centenária Sete Copas, entre as duas grandes portas de aço, onde fica mesa do centro encostada à parede do bar,           estava eu, deitado em meu leito de hospital. Em volta da cama, cerca de 3 m de distância, num semi-círculo que se estendia até a calçada, estavam as mesas onde o burburinho da happy hour numa sexta-feira eclodia entre risos, churrasco, piadas, música e muita bebida. Subitamente, não obstante todo o agito do bar, tudo silenciou à minha volta; e dali, eu imóvel no leito observava toda a alegria que enchia o ambiente com muita gente conversando ao mesmo tempo, outros jogando baralho, e ainda outros com atenção voltada para a TV, que exibia música sertaneja, enquanto para mim tudo era silêncio, como se estivesse em outro lugar. Nenhum som era absorvido pelos meus sentidos. Então uma nota bem grave soou solene nessa  redoma que me envolvia, depois mais duas,  formando uma perfeita orquestra invisível, que enchia o ar com  notas muito graves, depois outro instrumento, agora mais leve, em seguida som de harpa, violinos, flautas e outros instrumentos de sopro, faziam uma música forte e progressiva que acabava numa outra nota grave e retumbante. Então bem baixinho, um som de  violinos muito leve e sutil, e naquele vão entre o meu leito e as mesas do bar, bem aos meus pés se aproximava o Nenim, com seus cabelos despenteados e muito brancos, vestido num traje a rigor, como se estivesse diante de uma solenidade muito importante, com seu terno preto, camisa branca, muito alva, e uma  delicada gravata borboleta. Sobre a cabeça trazia um capelo, um desses chapéus de formatura com um cachinho negro  do lado direito. Nas  mãos trazia um tipo de uma pasta escolar, talvez uma partidura aberta, e ao som dos violinos começava a cantar baixinho “No more on the brasos”, enquanto lentamente de seu lado direito, com trajes semelhantes, e com o mesmo tom solene se postava o Militão, que agora cantava em dueto com o Nenim. Então ao lado dos dois foram se enfileirando o  Carlito, o Vicente, o Jacó,  o Dimas, Jaboti, e um a um, todos os colegas do bar; todos trajados a rigor como o Nenim e cantando como um coral perfeito quase celestial, culminando numa progressão vocal, e o súbito silêncio. Então baixinho iniciavam uma nova canção; agora era “A  white  shade of pale”, e depois muitas outras foram executadas em notas exatas e perfeitas. Eu olhava ao redor e observava que as mesmas pessoas que cantavam no coral estavam também   sentadas nas mesas, e dessas embora as avistasse não lhes ouvia as vozes; só o som afinado e sutil do coral enchia minha   audição, alegrando minha alma doente e aflita.
                                                    Depois, lentamente esse devaneio foi se afastando, e minha cama retornou ao quatro do hospital. Diante de mim estava uma parede nua, como uma tela de cinema em cinemascope, medindo mais ou menos 2 por 8 metros, que se iluminava lentamente mostrando uma   moldura muito bem desenhada em branco e azul escuro. Dentro dessa tela ou moldura, se inseriam imagens muito        nítidas, como se fossem bordadas em azul escuro, movendo-se lentamente da minha esquerda para a direita. Eram passagens felizes de minha existência, desde a infância. Ali se sucederam imagens dos jogos de bola, das caçadas de passarinhos, das férias no sítio do vovô Augusto, depois imagens da adolescência, do primeiro namoro, do primeiro emprego, da minha primeira filha, e logo depois  na tela, estava eu sentado no sofá com o meu filho pequenino no colo, que ao sorrir para mim mostrou na gengiva superior um pequenino ponto branco. Era seu       primeiro dentinho que eclodia na boca pequenina. Num salto sai do sofá e fui em busca da máquina fotográfica, e passei a provocar-lhe o riso para que eu registrasse o primeiro dente. Nesse instante a imagem parou no centro da tela, e uma voz   suave e autoritária falava comigo, dizendo: -Parei essa imagem diante de ti para que entenda o que tenho a dizer-te. Você está mais preocupado em registrar o primeiro dente do teu filho, que em viver com alegria esse momento.
Alguma vez depois que se tornou adulto teu filho se interessou  por essas fotografias? Alguém se interessou? Nem você mesmo? Sabe onde estão essas fotos agora? Em uma velha caixa    guardada entre as inutilidades que você carrega e que jamais   lhe serão úteis. Assim aconteceu com as viagens que você fez.   Registrou mais inutilidades e viveu menos os momentos felizes. Você precisa aprender a viver melhor,  sem nenhuma necessidade de mostrar às outras pessoas que foi feliz em algum momento ao longo da tua vida. Esses momentos são únicos dentro da tua existência e devem ser aproveitados com toda a intensidade, como um vinho raro de uma safra rara e inédita que jamais se repetirá. 
                               Meu Deus! Que hora para alguém ou alguma coisa me chamar a atenção, e me apontar erros do passado! A gente vive acreditando que tudo em nossa    existência é um aprendizado; que os erros cometidos são um    caminho para futuros acertos; mas agora concluo algo muito   diferente. Essa história de aprender com os próprios erros é uma tremenda babaquice. As coisas realmente importantes em nossa existência não permitem que erremos com elas. Dificilmente nos dão uma segunda chance. Viver não é  freqüentar uma escola. Tem muita coisa que é preciso saber sem nenhuma aula. Então o ser humano não é nenhuma imagem da perfeição. É retrógrado, lento e impreciso em seus atos, e aquilo que em determinado momento lhe parece trazer prazer ou felicidade, em outro momento pode lhe causar efeitos terríveis, com consequências catastróficas.
                                 Minha consciência continuava impondo lições de moral ao meu ser combalido e febril: O ser  humano jamais foi perfeito, mas você precisa aprender a ser    cada vez melhor, principalmente para si mesmo. A perfeição  é a gênese, a própria vida enquanto biológica apenas. Perfeita como os números na matemática ou a precisão das notas musicais. Até a dor, o sofrimento e a morte fazem parte da perfeição com que o homem foi criado. A imperfeição e o erro vem com as emoções. Os sonhos e os anseios do homem são errantes e imprecisos como o vento, e as paixões são destruidoras como os  grandes furacões. A gênese do homem é a perfeição e a ordem, mas o ser humano se transformou no caos. E o caos agride a ordem e a si próprio, ou seja, ao próprio ser humano.
                                 Bem sei o quanto ao longo dos anos pelos quais passei, contribui para que o caos se estabelecesse dentro de mim  mesmo. E agora diante de uma situação contra a qual sei que quase nada posso, admito que preciso me tornar um    ser humano melhor, que preciso abandonar velhos princípios,  velhos dogmas, velhos tabus, e instalar dentro de mim um novo ser, mais íntegro, mais comunitário e mais íntegro; e sei também   que tudo isso parece fácil aqui no leito do hospital, mas depois,  quando eu ir para a casa, para a rua, meu coração voltará a me conduzir às velhas práticas, aos mesmos erros, e pouco a pouco me farei novamente o mesmo passageiro da terra, tomando o mesmo lugar, o mesmo assento nessa viagem chamada viver. A mudança radical é um caminho que ainda não conheço, e meu ser conservador dificilmente me deixará ousar em busca de mudanças radicais. Aqui e agora me proponho a compreender  e viver melhor, mas não me engano. Essa briga comigo mesmo é árdua e severa, e me causará certamente lesões muito profundas.
                                                        Continuei acompanhando imagens na tela diante de mim, cada vez mais imprecisas, até que adormeci. Então aconteceu um  último devaneio. Meu leito estava colocado embaixo de uma enorme varanda, muito arejada, muito  fresca, no mais absoluto silêncio, sem ninguém à minha volta. Estava voltada para um  recanto campestre muito agradável, com um gramado muito verde cercado de pinheiros enormes de maneira simétrica e elegante, tendo ao centro um pinheiro enorme, o maior de todos, formosamente esculpido na natureza como uma enorme árvore de natal. Talvez o pedestal perfeito para o pouso de um anjo. Debaixo dele havia um cocho coberto como o telhado de uma casa com alimento para pássaros, e ao lado uma pequena bica d’água muito fresca e límpida. Eu admirava esse recanto diante do mais absoluto silêncio quando veio do céu um pássaro-preto muito esguio e imponente, como um marechal em dia de parada militar. Sobre a casinha no solo, gorjeia por três vezes num canto melódico como um soar de trombetas, então vai à bica d’água, e depois ao cocho de comida. Nesse instante rompe-se o silêncio e fortes rajadas de vento cortam o ar, trazendo no céu muitas nuvens negras que se movem rapidamente em meio à ventania, como se fosse cair um enorme temporal. Em meio às nuvens se abre um pequeno espaço muito azul, que se enche de brilho, e nesse facho de luz surge a mais bela das aves, jamais vista por mim.O pássaro-preto amarelo, grande como uma águia, imponente como um anjo do apocalipse, e se conduz ao pico do pinheiro em meio às rajadas do temporal. É como se os galhos mais altos procurassem suas garras para se oferecerem ao pouso perfeito. Então ele brilha soberano sobre o ponto mais alto do lugar. Enquanto isso o pássaro menor termina sua refeição e levanta vôo em meio aos redemoinhos silibantes desaparecendo em meio às nuvens.   Da imponência de seu trono o grande pássaro   amarelo segue o ritual do menor, e emite três gorjeios perfeitos, que cortam o ar carregado como uma orquestra de querubins. Então lança-se ao ar num vôo soberano rumo ao infinito. Nesse instante a tempestade silencia e o céu se enche de luz, fazendo do local o mesmo recanto bucólico e agreste. Em meio à paz desse rincão quase celestial eu adormeço na varanda. 
                               Esses devaneios são parte das infinitas alucinações que tive durante a primeira semana internado no Hospital de Base de São José do Rio Preto, após uma    súbita recaída em meu quadro de saúde.
                               É a tragédia anunciada. Que apenas nossa insensatez  e a pseudo auto-confiança nos impede de decifrar. (As imperfeições inerentes ao ser humano). Eu não vinha me sentindo bem há mais de uma semana. Muito cansaço, alguns pontos escuros na pele, e pequenas petéquias (manchas minúsculas avermelhadas) espalhadas ao longo das pernas, nas coxas e nos joelhos. Pequenos arranhões    não vinham cicatrizando facilmente. Após uma semana desses    sintomas, ao escovar os dentes tive um leve sangramento nas gengivas. Dali há duas ou três horas percebi dois hematomas bem escuros, quase negros no interior das bochechas, e no final da tarde um outro bem maior sobre a língua. Esses sintomas me   preocuparam; eu já tivera antes um quadro semelhante, que acabou desaparecendo sozinho. Naquele dia não tomei o medicamento que vinha usando (Hidrea), julgando tratar-se de alguma toxidade ao mesmo. Na manhã seguinte além desses sintomas, ainda apareceu uma dor terrível no  nervo ciático ao longo de toda a perna esquerda. Só então acendeu dentro de mim uma luzinha vermelha de atenção, ainda assim,  sem me dar conta de que era hora de um alerta total, de perigo iminente. Comecei a me preparar  para ir ao hospital.   Calmamente finalizei pequenas tarefas, fui ao banco pagar as contas da semana já com dificuldade devido a dor muito grande na perna esquerda. Após o almoço e um pequeno descanso, ao tentar me levantar não consegui manter o corpo ereto. A dor no lado direito do corpo aumentava cada vez mais, impedindo que a cabeça e o tórax se erguessem por inteiro. Com muita dificuldade fui ao banheiro, fiz a barba, tomei banho e me vesti aguardando meu filho Thiago que me levaria ao Hospital de Base no final da tarde. Pensei ir até a torneira do banheiro apanhar um copo d’água, já que esse era o local mais próximo de minha cama, e depois deitar-me aguardando. Quando cheguei à porta do banheiro, com o corpo curvado e o copo na mão eu cai. Foi tudo tão súbito e inesperado que demorei a entender o que havia ocorrido.   Foi como desligar um interruptor. Minha perna simplesmente      "desapareceu" de baixo de mim, e cai como uma fruta madura  que se desprende do galho subitamente. Dessa vez  tive sorte. Cai primeiro com a bunda no chão e instintivamente deixei o copo e levei as duas mãos à nuca, então minhas costas foram ao chão e depois a cabeça protegida pelas mãos. Depois de alguns segundos me dei conta do que acontecera, e fiz uma avaliação do ocorrido. Não encontrei nenhum ferimento. Sentado no chão enchi o copo com água e engatinhando voltei à cama ainda com mais dificuldade. Ainda faltava subir na cama. Quando me apoiei para levantar o corpo o sistema desligou novamente. Então caí com o joelho direito indo direto ao chão. Uma leve pancada. Alcancei o telefone e chamei meu filho que me levaria ao hospital. Nos dez minutos que ele demorou a chegar fiz uma avaliação de minha situação e conclui que não tinha fraturas, nem hematomas mais   sérios. Apenas uma pequena pancada no joelho direito que ainda não doía . Menos mal, concluí. (Talvez não sentisse a dor do traumatismo devido ao excesso de analgésicos que tomara ao longo do dia, e devido à dor do nervo ciático que era muito forte). Tentei ir ao carro abraçado ao meu filho mas isso foi impossível, já que minha perna direita parecia estar desligada do sistema nervoso central. Fui conduzido em minha cadeira de rodinhas do  escritório. Trinta minutos depois chegamos ao Hospital de Base, e agora o joelho machucado  doía alucinadamente. A espera foi terrível enquanto eram preenchidos formulários e se aguardava o médico plantonista. Tive dificuldade em explicar à médica que me deu o primeiro atendimento, o meu estado de saúde. Os hematomas na boca doíam  e sangravam, dificultando a fala, e a dor no joelho era cada vez mais insuportável. As primeiras injeções que me deram para aliviar a dor foram como beber água doce, sem nenhum efeito. Além disso cada picada de agulha tinha um outro efeito bastante danoso. Imediatamente após a injeção se formava um hematoma enorme no local da picada. Então, após 4 ou 5 tentativas me deram um medicamento que aliviou um pouco a dor. Logo depois já no quarto fui medicado com drogas mais eficazes que tornaram a dor no joelho menos dramática, mas que deixaram num certo estado de torpor, onde permanecia semi adormecido e com a mente repleta de devaneios. Eu percebia que as enfermeiras tinham dificuldade em me puncionarem   as veias, que devido à plaquetopenia “estouravam” facilmente, mas já não sentia nem mesmo as dores das picadas.
                                                     
                              Na manhã seguinte eu tinha o joelho bem inchado, a perna toda escurecida pelo sangue que jorrou internamente dos pequenos vasos rompidos no trauma, e os   braços em condições bem deploráveis devidos aos inúmeros    hematomas causados pelas punções. A cada tentativa de nova coleta de sangue para um hemograma ou outro exame qualquer, os hematomas continuavam aumentando da altura dos ombros até as mãos.Aos poucos o joelho começou a doer alucinadamente, se tornando uma tortura os exames de ultra som e doppler venoso.
Felizmente não foi constatada nenhuma fratura ou trombose.Menos mal.
                              As complicações hematológicas causadas    pela leucemia são muito complexas, e às vezes percebe-se que até os médicos mais experientes demonstram alguma incerteza ou insegurança diante delas. Não foi diferente nesse meu caso. No   primeiro dia de tratamento hospitalar recebi apenas medicamentos para aliviar as dores e soro fisiológico, enquanto eram efetuados inúmeros exames de sangue. Causou perplexidade o meu       hemograma desse primeiro dia.  Resumindo:
                                                                                       Normal
Leucócitos            187.000                                         6.000/10.000
Hemoglobina            5,9                                                 l2,0/15,0
Plaquetas                 3.000                                       150.000/450.000

Diagnóstico: Eu tinha uma leucocitose muito alta. (Excesso de   glóbulos brancos), uma anemia muito severa (baixa hemoglobina), e uma plaquetopenia muito significativa ( nenhuma coagulação no sangue, que ocasionou um trauma enorme no joelho apesar de haver um ferimento bastante pequeno). No dia seguinte   logo pela manhã recebi as primeiras bolsas de plaquetas e hemácias, mas a carência desses componentes em meu organismo era muito grande, e os primeiros efeitos levaram um bom tempo até se manifestarem. Enquanto isso cada vez que eu recebia  uma furada de agulha aumentava o número de hematomas nos braços. Isso devido à falta de coagulação do sangue, já que uma vez furada a veia, quando se retirava a agulha, o sangue deixava de jorrar com uma leve compressão de um algodão embebido em álcool, o furo na veia não fechava, então o sangue seguia  jorrando embaixo da pele. 
                          Me lembro vagamente de ouvir pessoas indagarem aos meus acompanhantes se eu me ferira em algum acidente de automóvel, já que a perna e os braços inchados e roxos, pareciam traumatizados com contundência. Alem disso pouca coisa me lembro dos dois primeiros dias no hospital, exceto a dor terrível no joelho. Não tenho recordações precisas dos parentes e amigos que me visitaram, já que os devaneios tomavam conta de minha mente no estado de semi dormência. Apenas de alguns acontecimentos mais pitorescos ou engraçados eu tenho alguma lembrança, como as alucinações que descrevi anteriormente e de ser acordado em plena madrugada pela minha mulher, puxando com todas as forças a mangueirinha do soro, que naquele momento para mim era uma vara de pesca com um belo dourado fisgado. Outra vez foi o jogo de baralho. Eu gritava truco, seis, nove, doze, ladrão, brigava com todos os companheiros, e novamente minha mulher me acordava todo suado e muito agitado.
                           Felizmente estive sempre bem acompanhado dos parentes mais próximos, aos quais não posso deixar de agradecer. Primeiro fui acompanhado pelo meu filho Thiago, que me levou ao hospital e ficou comigo nas primeiras horas, depois minha mulher, que me acompanhou até o último dia, minha mãe, prestimosa e cheia de cuidados, meu irmão Daniel e minha irmã Lúcia, que deixaram seus afazeres e suas próprias  famílias para estarem comigo se revezando principalmente nesses primeiros e mais difíceis dias de internação.
                           Esse meu quadro clínico inicial era bastante delicado, quase crítico, agudo e bastante progressivo; por isso foram necessárias dosagens bem alta de medicamentos, principalmente sedativos, e de contínuas transfusões de sangue (hemácias) e plaquetas. Só a partir do sexto ou sétimo dia houve uma certa estabilidade em minha debilitada saúde, mas uma coisa, é uma coisa, e outra coisa é outra coisa.Existem certas verdades na medicina que são absolutamente      incontestáveis, uma é que a diferença entre o remédio e o veneno  é  apenas a dosagem aplicada, e outra é que não há remédio que cure um mal sem causar outro. É o efeito colateral. Nesse caso o efeito mais danoso se deu com o medicamento que provoca a     baixa dos leucócitos (excesso de glóbulos brancos), que me causou um acúmulo de água nos pulmões, e que diante do quadro debilitado em que me encontrava se transformou em mais um problema muito sério. E me levou a passar dois dias na UTI.
                          Chegou a véspera de Natal, e eu estava no nono dia de internação. Que dia difícil! Sempre ao meu modo    tive nesse dia comemorações especiais. Durante meu tempo de bancário (que representa uma boa parte de minha vida), já ia ao trabalho com uma garrafa de champanhe, que guardava embaixo da mesa, e aos poucos a consumia em pequenos goles entre uma e outra tarefa. Vale lembrar que nesse dia o expediente dos bancos é bastante reduzido e nos reserva muito tempo para a confraternização. Mas agora aqui no hospital, sem poder me locomover sozinho, o burburinho e o clima de festa me enchem de angústia, e prá piorar a situação, tudo no ar exala o cheiro de um bom banquete, uma boa bebida e muita alegria. Dentro do quarto a televisão é o porta voz que nos  traz tudo o que acontece lá fora, e nesse dia desde as novelas até os telejornais, só nos trazem compras, presentes, festas e celebrações cheias de vigor e alegria. Eu não tinha nenhuma esperança de que alguém mesmo de maneira furtiva me oferecesse uma pequena taça de vinho ou champanhe, mas acreditava com convicção que no jantar poderia aparecer um pedacinho de pernil, peru ou bacalhau. Que decepção! Apareceu tão somente uma coxinha de frango com purê de batatas. Paciência, Ta  bom...
                           À noite não consegui dormir, e passei a    respirar com certa dificuldade. Esses sintomas continuaram no dia seguinte, que era o dia de Natal. Apenas um médico assistente veio me ver pela manhã mas não tomou nenhuma atitude  diante de minhas queixas. Só na manhã seguinte, quando minha falta de ar era bem acentuada, o médico fez um exame mais detalhado, constatando a presença de água nos pulmões.  Nesse caso seria muito danoso se eu  contraísse uma pneumonia, então me encaminhou à UTI, para um tratamento mais especializado.
                          Num quarto de hospital aparecem pessoas dos mais variados tipos. Vestidas de palhaço, que vem lhe contar piadas e alegrar o ambiente, acompanhantes dos pacientes vizinhos, cansados de seus doentes e vem passar horas e dizer besteiras no seu quarto sob o pretexto de estarem lhe visitando. Geralmente diante de seu estado combalido e doentio murmuram com ares de extrema condolência e piedade: Ah! Coitado. Outros aparecem com receitas milagrosas à base de ervas dos lugares mais exóticos, que devo tomar em segredo, sem o conhecimento dos médicos. Velhos que tem como passatempo fazer visitas aos doentes todas as tardes, e principalmente religiosos. Esses pelo menos quase sempre lhe trazem palavras de conforto e de esperança. O problema é que cada um tem um tipo diferente de  milagre para lhe oferecer, e a gente acaba ficando sem saber a qual santo recorrer. Um chega e lhe oferece uma oração apenas. Ótimo. Depois outro diz que é devoto do santo fulano de tal, e caso eu peça com fé tal santo é capaz de me curar. Ainda outro traz no bolso uma oração milagrosa para um outro santo, e me recomenda que eu leia sete vezes em jejum e sete vezes antes de dormir. É tiro e queda. Depois uma senhora traz uma garrafinha com uma certa água milagrosa, que se eu provar um pouquinho certamente ficarei curado. Meu Deus!
                             Deus? É isso que eu preciso nesse momento. Só isso. Não importa o tamanho de minha crença ou de minha fé. É Deus que eu preciso. É a Deus que eu preciso buscar. E até nisso as pessoas me apresentam as mais variadas        alternativas. Uma vai à igreja, pedir que rezem ou orem por mim. Outra acha melhor trazer alguém da igreja para rezar ou orar por mim aqui no hospital. Outras se apresentam para imediatamente fazerem suas rezas ou orações em meu favor.
Só uma coisa em comum. Todas me apresentam a figura de um intermediário para o meu contato com Deus.
                              Ah! Nesse momento eu não quero intermediários. Eu sei o quanto a minha vida corre perigo, mas isso não é a minha maior preocupação. Eu não tenho vontade    de pedir a Deus nenhuma cura, nenhum milagre. Quero apenas que Ele olhe para mim, que me veja, então terei certeza de que Ele está presente, e sabe qual deve ser o destino de minha vida e de minha alma. Mas para isso preciso saber onde e como encontrá-lo. E para isso aqui no hospital tenho tempo de sobra, e nesses momentos de lucidez em meio a tantos devaneios começo a   me indagar se alguma vez tive a preocupação de buscá-Lo. Para isso obrigo-me a voltar à minha infância.
                               Dentro  da igreja evangélica pentecostal de meus pais onde eu fui identificado como gente, como ser humano efêmero e fraco, e fui apresentado a Deus. Não tenho nenhuma pequena lembrança de minha primeira infância, que não envolva o louvor e o temor a Deus. As regras ou os mandamentos eram severos, mas facilmente assimilados por uma criança ingênua, pura, e cheia de temores diante das promessas de castigos horríveis para os pecadores. 
                            Isso desde que desci do berço para a infância, para a vida, e as coisas, os acontecimentos começaram a preencher de aprendizado a minha alma pequenina. Nessa   época, minha mãe, ainda jovem e com apenas dois filhos (seriam seis depois), me enchia de mimos, fazendo com que eu adormecesse com cantigas de ninar, com longas histórias infantis, principalmente as de Monteiro Lobato, imitando seus personagens, e às vezes declamando poesias de Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias e outros. Ainda outras vezes me contava longas histórias da bíblia. Por outro lado meus avós eram só alegria com o netinho, que chamavam carinhosamente de "Bartinho". O avô me punha sentado em seu colo e cantarolava em meio às gargalhadas antigas canções em espanhol. Depois me contava histórias de uma certa literatura de cordel, também em espanhol. Enquanto isso minha avó me enchia de agrados, com balas, docinhos ou rosquinhas cobertas de açucar.
                             A mesma situação se repetia dentro da pequenina igreja de tábuas, pintada de azul. Dentro de casa deixei o berço, e dentro da igreja deixei o colo de minha mãe, indo ocupar os banquinhos das crianças ao lado do púlpito, lá na frente. Certamente para aquela criança inocente Deus estava entre aqueles pobres banquinhos de madeira de braços estendidos e pronto para habitar aquele pequenino coração. 
                             O primeiro aprendizado é cheio de encantos, magia e novidades, e as coisas se enraizam na mente e na alma da criança, aberta a tudo o que lhe é ministrado. Então ia à igreja sempre bem vestido, cheio de vontade, e logo fui aprendendo a recitar os salmos, a cantar os hinos e a orar   cheio de fé e esperança. Logo aprendi a ler; e depois dos livros escolares, a bíblia passou a ser meu livro nº 1. Me interessei pelas histórias do Velho Testamento, desde Abraão e Isaac até as histórias dos profetas, como Eli e Samuel. Conhecia a saga de Jacó e os doze, que seriam depois as doze tribos de Israel; toda a história de José, em Canaã e no Egito, A história de Davi, de Salomão, de Elias e Elizeu, além de todo o Novo Testamento,      que dava testemunho de Jesus Cristo e seus Apóstolos. Tal era o meu conhecimento bíblico, que nas reuniões de jovens e menores eu não dava chance a outros meninos ou meninas de responderem às perguntas que  eram feitas às crianças. Certamente   Deus estava alojado dentro de meu ser como um guardião  inseparável.
                               Essa pequena criança, não precisava de nada alem do coleguinhas e os irmãos para brincar e de comparecer aos cultos, cujo gesto vez por outra era premiado   com um picolé na sorveteria do Julio Crepaldi. 
                              Até que um dia... O menino cresceu. E agora tinha outros colegas, que iam ao circo, e falavam maravilhas das trapalhadas dos palhaços. Outros que iam ao cinema e saiam extasiados com os filmes ainda em preto e branco. Seus  colegas colecionavam figurinhas, liam gibis, jogavam futebol, e até se arriscavam a mergulhar nos riachos das redondezas.
                              Tudo isso era extremamente proibido para mim. Que era crente. Que não era uma pessoa "do     mundo", e que deveria seguir o caminho da retidão e da justiça. Passei a cometer pequenos "pecados". Jogava futebol com a criançada, lia gibis do Tio  Patinhas escondido de todos, e furtei trocados dos parentes    para comprar figurinhas e passarinhos. Fui duramente humilhado e castigado pelo meu pai. 
                              Já vinha me afastando da igreja pela repressão que ela representava para mim, mas agora   me sentia absolutamente envergonhado de comparecer  aos    cultos. Deixei definitivamente de ir à igreja. Nunca mais me preocupei muito em saber se Deus guiava ou não os meus passos, se estava ou não dentro do meu ser. Penso que de uma certa forma Ele permitiu que eu tomasse o meu próprio caminho; permitiu que eu utilizasse meu livre arbítrio, usasse minhas próprias asas para me lançar em outros vôos. Eu não era um passarinho de cativeiro. Precisava do vôo livre, das nuvens, do espaço para ser feliz e cantar o meu canto. Num momento de  um devaneio, vejo Deus abrindo a porta da gaiola e dizendo: vai meu tolo passarinho  sonhador para longe do teu Senhor. Vai pousar em lugares perigosos e voar diante de muitas redes e alçapões. Vai, que você tem o meu salvo conduto, e nenhum passarinheiro o apanhará. Sozinho terás que aprender a se livrar das feras predadoras, do visgo e das tempestades que cairão sobre ti .   Leva contigo a Minha confiança e o meu amor de Pai. Sempre  me serás um filho amado, e terás sempre contigo as minhas palavras. Quando necessitares de mim, não precisa vir com humilhações, nem com cerimônias ou temores. Tu não és meu escravo, nem meu criado. Peça o que necessitares com fé e convicção, e eu estenderei minhas asas em tua direção e te  acolherei.   
                             Eu retorno à minha realidade, e estou aqui em meu leito de hospital, com muitas dores, muitas  queixas (que quase não faço), num quadro clínico certamente complicado, devido à doença que trago dentro de mim, insistindo em mudar à toda hora os melhores índices dos componentes de meu sangue, e sei que minha vida está em risco permanente; mas não carrego agora nenhuma culpa dentro de    minha alma. Nada atormenta meu espírito, e penso de que se eu sobreviver a mais essa tragédia, isso significa que meu Pai me outra vez, me tirou de mais uma prisão, para que eu possa seguir com uma vida   melhor, mais feliz,  e que meu principal objetivo será viver bem, e fazer melhor a vida das pessoas que convivem comigo. E se acaso eu vier a morrer não precisarei chegar de joelhos e implorando piedade ou perdão diante de Deus. 
                            Entretanto há uma incerteza dentro de mim. Para qual moradia voltarei amanhã? E de que maneira voltarei? Não sei. Tenho minhas convicções, mas não posso me considerar o dono de nenhuma verdade, afinal sou um pobre ser humano, falível e efêmero, e tenho dentro de mim as necessidades de todo ser humano, que atormentam minha alma diante da possibilidade de vir a habitar um outro mundo. De que maneira me apresentarei ali? Ou serei apresentado? Haverá risos ou choros? Verei novamente o meu neto pequenino? E todos que me cercam? Meu pais. Meus filhos? Minha esposa? Meus amigos?
                            Diante de tantas incertezas acho que preciso conversar com Deus. Preciso falhar contigo Deus. Preciso esclarecer as minhas dúvidas; Onde está você Deus? Tateio tímido a minha alma à tua procura, ainda um pouco incerto daquilo que faço. Tateio apenas, como quem apalpa alguma coisa muito preciosa, e que não sabe como tocá-la. Nesse momento sei que pessoas em muitos lugares, e de alguma maneira oram por mim. Admito e aceito as orações, por vezes até suplico que as façam diante de minha alma enfraquecida. E sei que são eficazes, que Deus pode interferir em minha vida através das orações daqueles que lhe são mais fiéis. Mas aqui e agora isso não me basta. Preciso falar com Ele. Tenho muitos devaneios e fantasias, mas tenho momentos de lucidez, e tenho sonhos que não sei se são ilusões ou revelações. Minha mãe está diante de mim, declamando um poema de minha infância, sob a luz de uma luz amarelada de uma mariposa ou lamparina. Meus olhos de menino brilham.
Quem sabe através dos olhos de menino e da pureza da alma de criança eu possa ficar um pouco mais pertinho Dele. Então o pequeno menino que habita a minha mente febril passeia por entre os banquinhos das crianças na velha igrejinha de tábuas. Será que está procurando Deus exatamente onde acredita que o tenha perdido? 
                            Em meio a tantas injeções, tantas incertezas e tantos devaneios, sei que meu corpo físico sofre e lamenta; mas estou certo de que meu espírito se acalma, e na madrugada quando não consigo dormir, por um momento me esqueço da dor e do cansaço, ali entre os banquinhos da igreja. E os instrumentos   tocam e todos cantam:
                                "Sião Celestial é repouso dos Santos,
                                 O Teu Arquiteto é chamado o Senhor..."
E depois:
                                  "As portas lá do céu são pérolas preciosas,
                                   E a praça da cidade é ouro reluzente,
                                   Ali tudo é puro, riqueza gloriosa..."
E percebo que os meus olhos se enchem d’água, e que a minha alma chora de prazer e de alegria. Não de remorso ou culpa.   Minha alma se alegra, meu coração bate palmas. Então posso falar com Deus. E sei que Ele me ouve. Ouve a minha alma de   criança e a protege debaixo de suas asas. 
                        Ah! Meu Deus! Então finalmente aqui Você está. Ainda dentro do meu coração de menino. Como pude andar por tantos caminhos sem me dar conta da tua presença? As lágrimas se enxugam em meus olhos, e fico cheio de indagações imaginárias, mas cheias de confiança. A minha alma abatida em nenhum momento me permite suplicar-Lhe cura para o meu corpo, nem solicitar milagres nos quais não ouso acreditar. Apenas a minha alma    precisa novamente tocá-lo (como aquela mulher tocou-Lhe as vestes), e fita-O dentro do pequenino coração. Então encontra um sorriso divino e eterno, cheio de conforto e regozijo para essa pobre alma abatida. Que não está em um leito de hospital, a minha alma encontrou Deus dentro do meu coração. Então segura a mão de um anjo muito bonito e adormece. 
                         Agora eu estava na UTI do hospital de base,  respirando calmamente com o cateter de oxigênio, quando a fisioterapeuta chegou muito dócil e  agradável trazendo consigo uma certa máquina para que eu respirasse  através dela, a fim de retirar a água que eu tinha nos pulmões. Me retirou o cateter que permitia uma melhor respiração, enquanto colocava sobre o meu nariz uma máscara parecida com essas de mergulho presa  atrás  na cabeça. Ligou a tal máquina e retirou-se. A princípio eu não percebi nada de errado com minha respiração, e até pensei que a tal máquina fosse aumentar o meu conforto. Aos poucos o ar jorrado na máscara foi ficando cada vez mais quente, depois percebi que puxava mais ar dos pulmões do que devolvia em seguida. Comecei a suar e respirar cada vez com maior dificuldade. Só então me dei conta de que máquina não significava nenhum conforto maior, mas empurrava para dentro dos meus pulmões um ar seco e quente, que me enxugava as vias respiratórias com o objetivo de enxugar os pulmões. O calor ficava a cada instante mais insuportável e transpirava muito. Após uma hora eu não suportava mais. Foi quando chamei pela enfermeira, que me informou que deveria aguardar mais um pouquinho até a chegada da fisioterapeuta. Mais uma hora se passou até que a horripilante máquina foi desligada, e foi recolocado o cateter de oxigênio. Que coisa boa! Um ar úmido e fresco me encheu as narinas causando imediata sensação de alivio. Estava encharcado de suor, da cabeça aos pés, mas agora tranquilo. 
                            Do outro lado da divisória que separa os leitos da UTI, estava Judite, uma jovem senhora moradora de uma pequena chácara em Ibirá. A Judite fora internada com fortes dores de cabeça e teve detectado um tumor no cérebro que seria retirado no dia seguinte. Tinha crises de muita insanidade e tentava desesperadamente fugir do hospital pulando por cima das grades da cama da UTI (que são bem altas), enquanto era segurada pelas enfermeiras inconformadas com as tentativas de fuga da doente. A única solução encontrada foi amarrá-la à cama com cintas já estrategicamente colocadas para isso. A princípio ela se debatia
bastante e gritava pela presença da polícia a fim de libertá-la, depois chamava pelo nome de parentes, certamente filhas, pedindo que vissem tirá-la dali. Diante do insucesso de tanta  gritaria mudava a estratégia e implorava a todos que passavam que a libertasse.
                           -Pelo amor de Deus, dizia, me socorra, olha só como estou presa. Traga uma tesoura ou faca e corte aqui, por misericórdia.
                            Dali a pouco outra enfermeira se aproximava.
                           -Ai meu amor. Eu dependo de você. Fiz uma besteira e deixei me amarrarem. Me solta pelo amor de Deus. Tenho tanta coisa pra fazer lá na chácara, as galinhas não comeram, não dei água pro cavalo e os cachorros estão presos. Me solte. Mais um insucesso, e a tática mudava outra vez, falando agora com a enfermeira ali perto sentada em sua mesinha, preocupada com seus afazeres. 
                          -Querida vem cá. Eu vou ficar boazinha. Pode cortar o pano. Me solte, eu não vou mais fugir. Olha vamos comigo lá na chácara, que eu vou te dar três frangos caipiras e um peru. 
                            Eu, que até então só ouvira, disse:
                          -Judite, ela não quer galinha. Quer uma novilha bem gorda.
                          -Ah! Isso já é demais. 
                           Continuou amarrada até ser sedada e adormecer. Só acordou no dia seguinte depois da operação.
                            Por alguns instantes a paz reinou e silêncio tomou conta da UTI. Por pouco tempo. Agora era o jovem Matheus que sofrera um grave acidente de automóvel e estava com o corpo todo esfacelado, embora lúcido e sóbrio. 
                            Com esse paciente o problema era outro. Ele berrava palavrões e ofensas horríveis a quem tocasse suas feridas expostas. Mas eram necessários os curativos, a limpeza de seu corpo e até as necessidades fisiológicas. Era uma longa sessão de palavrões enquanto era feito o serviço.
                            Mais tarde o  Matheus também se acalmava com  o corpo bem limpinho e as feridas bem cuidadas.
                             Então eu começava uma nova sessão com a maquininha de respirar ar quente. Após dois dias já respirava bem e voltei ao quarto para cuidar da perna traumatizada e da plaquetopenia. Ainda bem.
                             Agora escrevo em tempo real. Hoje é quinta feira, 14º dia de internação e me sinto bem melhor, embora o médico diga que ainda não é hora de alta. A dosagem de plaquetas no sangue insiste em não aumentar e sem plaquetas o joelho não se recupera. Estou com a perna muito inchada e escurecida pelo sangue que vazou dos pequenos vasos. Ainda não entendo como uma pancadinha dessas pode ter causado tamanho estrago. Quando era criança minha mãe curava isso bem depressa com um curativo com erva Santa Maria, fumo e urina. É certo que agora meu estado físico explica tudo isso, e é hora de uma certa paciência, já que começa a bater um a vontade muito grande de ir para a casa. Aos poucos percebo que o pessoal da enfermagem esta mais  descontraído com meu estado de saúde, que entram no quarto e fazem brincadeiras satisfeitos com  a minha recuperação, nem vejo mais preocupações no semblante de meus visitantes, nem dos parentes. Nesses dias as visitas diárias do Dani (meu irmão Daniel) sempre disposto e pronto a colaborar em tudo, e de minha mãe Cidinha,  já não tão jovem, batendo nos oitenta anos, sempre uma formiguinha magra carregando alguma coisa nas costas para o nosso bem estar, ajudaram muito em nossa melhor convivência com o    hospital.
                             Que saudade de meu netinho Vitor Hugo, (o periquitinho do vovô), que foi passar o Natal com os avós paternos em Santa Catarina e deve estar na praia em Caboriú.
                              Em meio a essas reflexões, me recordo de quando fiquei doente em Santa Catarina, e foi diagnosticada a leucemia, no primeiro semestre de 2002. Eu morava com minha família em Blumenau, e todos os meus filhos eram solteiros. Eu, pessoalmente vinha de  seguidos tropeços e quedas pela vida em todos os sentidos. Depois de mais de vinte anos de sucessos profissionais muito expressivos, que me proporcionavam um excelente  nível  social cheio de festas, viagens e badalações eu havia experimentado uma queda sem precedentes em minha vida. Acabaram quase todos os meus bens, deixei de ter qualquer fonte de renda, e me aprofundei em depressão e alcoolismo, que rapidamente passou do social ao trágico. Dos drinques aos porres homéricos e contínuos. Havia sido abandonado pela esposa, que ficara com os filhos em São Paulo, e estava em Santa Catarina na tentativa de um recomeço, num trabalho oferecido pelo meu irmão Valdeir, em Blumenau, como representante de empresas do setor de auto peças.
                           Mas tudo parecia correr e tramar contra mim sob todos os aspectos. O negócio era altamente rentável e minha dedicação era absoluta. Deixei as bebedeiras, passei a ir de vez em quando às igrejas e corri em busca de socorro nos grupos de     Alcoólicos Anônimos. Tudo isso era bom e mudava meu comportamento. Minha família foi para Blumenau a fim de iniciarmos uma nova vida. Mas as cachoeiras pareciam subir pelas pedras, e fogo descia dos morros, lambendo tudo o quanto podia devorar.
                            O setor de auto peças que era auspicioso, entrou num colapso sem precedentes no final do governo FHC, pois trabalhava com uma maioria de produtos importados, e o dólar deu um salto gigantesco em poucos meses ou dias, batendo perto dos quatro reais. A maior parte de nossas mercadorias, principalmente as mais procuradas tiveram seus preços triplicados rapidamente e nossos fregueses, as lojas de auto peças, fugiam das compras, tanto pelo proibitivo aumento do dólar como temendo um colapso econômico no início do governo Lula. A empresa que eu representava através de meu irmão vendia kits de vidros, travas e alarmes elétricos, todos importados da Itália, bem depressa entrou em concordata. Meu irmão também pouco podia ajudar-me, vendendo 1/3 ou menos que o habitual. Eu tinha que pagar aluguel, filhos na escola, e para colocar a cereja no bolo tive meu velho Monza com o motor fundido.
                             Felizmente em nossa casa todos arregaçaram as mangas, e cada um fez a sua parte para não deixar o caos retornar. Minha mulher foi trabalhar num colégio onde cuidava de crianças da pré escola. A Débora, minha filha mais velha, passou a trabalhar numa padaria, o que por algum tempo foi uma bênção dentro da família. Explico: A padaria fechava entre nove e dez da noite, e a Débora ficava até a hora de fechar procedendo à limpeza das vitrinas. Sempre no último instante o patrão a pedia que deixasse limpa a estufa de salgados, e levasse para a casa o que havia restado, já que seriam inúteis esses salgados no dia seguinte. O resto da família ficava em casa vendo televisão. Eu quase sempre atualizando meus catálogos, já que os preços mudavam todos os dias, mas notava-se que todos aguardavam a Débora. De repente ela aparecia à porta cheia de sorrisos. Se a sacola que trazia era grande todos se alegravam. Às vezes vinham baguetes deliciosas, sanduíches, tortas e outras iguarias; às vezes apenas duas coxinhas ou dois quibes. Muito bom.
                               O Thiago, meu filho do meio, então com 15 anos, pulava da cama às 4 da manhã, e em sua mobilete ia pelos morros gelados de Blumenau até o emprego em uma malharia, que também fora arranjado pelos parentes. O pequeno salário dava para suas despesas pessoais como roupas e calçados, e para pagar  a condução até a escola. Mas me parece que o Thiago no sentido profissional, foi quem tirou as melhores lições dessa fase difícil, tornando-se agora num competente empresário.
                               Eu continuava remando contra a maré com um remo sem pá. Trabalhei seis meses visitando a clientela de ônibus, às vezes andando infindáveis quilômetros para economizar 3 reais, levantando de madrugada para ser o primeiro vendedor a chegar à porta das lojas, e assim ser o primeiro a ser atendido pelo comprador. Me alimentando mal, dormindo mal, e com as comissões cada vez menores. Até que um dos meus clientes, proprietário do Auto Peças Araldi, em Brusque, me ofereceu um motor que retirara de um Monza batido, por R$ 1.000 em quatro pagamentos. Voltei a dispor de carro para trabalhar. Agora vai.
Agora eu podia viajar mais,  cobrir uma clientela maior; mas a firma que eu representava estava em concordata e mantinha preços difíceis de competir. Consegui com meu irmão uma outra representação em seu nome em algumas cidades onde outros representantes abandonaram as vendas. Agora vai. Doce ilusão... Fui para Camboriú na segunda feira pela manhã, com uma lista de potenciais clientes. Me dirigi logo cedo à agência da FORD à procura do comprador de peças. O senhor convidou-me  entrar, me apresentei, e passei a falar da empresa que eu representava.
                              Ah! O senhor é o novo representante dessa empresa? Lhe disseram que seu antecessor aprontou uma das boas comigo? Me colocando em risco um emprego de mais de vinte anos? Saí dali sem abrir a minha pasta e sem vender nada. Fui para Itajaí, a uns 20 quilômetros dali. Auto Peças Sidnei. Quando me apresentei o proprietário riu num tom de gozação. Me informou que meu antecessor lhe enviara uma enorme quantidade de peças não pedidas, que lhe pedira dinheiro  emprestado e desaparecera. Novamente não abri a minha pasta de trabalho. Segui meu destino até Florianópolis, sempre me deparando com os mesmos obstáculos, as mesmas histórias, as mesmas desonestidades do antigo representante. Não vendi nada. Na semana seguinte repeti o mesmo itinerário e as mesmas visitas. Consegui duas ou três vendas pequenas. Melhorou. Passei a ser ainda mais persistente. Estabeleci duas linhas de trabalho. A primeira, iniciava em Penha, Piçarras, Navegantes, Itajaí, Camboriú, sempre pelo litoral. Itapema, Tijucas, Biguaçu, São José e Florianópolis. A segunda iniciava em Brusque, ia a Nova Trento(terra da Santa Madre Paulina), São João Batista e daí, pelo interior até Florianópolis.
                                Agora já conseguia pagar  aluguel e ao supermercado. E só. Nas viagens fazias verdadeiras "ginásticas" para gastar pouco. Almoçava ou jantava, nunca os dois. Quase não sobrava dinheiro para o hotel. Então dormia dentro do carro nos postos de gasolina. No inverno o frio era violento, então
à tarde, após o dia de trabalho passava em um supermercado, on de comprava um litro de vodka de 1,99, desses de plástico, com gosto de rolha queimada. Me trancava dentro do Monza, baixava o banco, ligava o rádio bem baixinho e gole a gole esvaziava o litro, então dormia. Só que agora não era tanto o alcoolismo. Era a necessidade.
                                 Certo dia apareceu em Blumenau um jovem senhor, trazido pelo meu irmão, diretor de uma distribuidora de peças de Curitiba, à procura de um representante para a região. Feitos os primeiros contatos, os primeiros acertos, ficou combinado que eu viajaria com ele naquela primeira semana com o carro da empresa, que também pagaria todas as despesas da semana de aprendizado. Na semana seguinte eu iniciaria o trabalho por minha conta. Agora vai. Na manhã seguinte viajamos bem cedinho beirando o rio Itajaí Açu, sentido rio acima até Rio do Sul, onde iniciamos as visitas. Meu monitor tinha muita experiência no ramo, e esses primeiros contatos foram bem promissores. Tudo parecia bem encaminhado. À hora do almoço fomos à primeira refeição por conta da empresa. Bons restaurantes em Santa Catarina são realmente bons restaurantes. Servido o almoço, uma mesa que há muito tempo não via diante de mim, iniciamos a refeição. Foi quando senti uma estranha indisposição e uma estranha dor no estômago. Fui depressa  o banheiro onde num melhor exame observei que tinha um caroço enorme do lado esquerdo da barriga, como uma batata, maior que um ovo de galinha. Isso causava o desconforto no estômago. Voltei à mesa sem nenhuma vontade de continuar o almoço. Isso foi uma ducha fria no meu entusiasmo e na minha primeira semana de trabalho com a nova empresa. Nada comentei com o meu chefe e nem mesmo com a aminha família, mas no decorrer da semana o caroço aumentou, chegando na sexta feira com uns 15 cm. Como um abacate. Concluí comigo mesmo que tinha um câncer no estômago, e que precisaria de um tratamento ou até mesmo de uma cirurgia com urgência. Alem disso a cerca de um ano vinha me aparecendo periodicamente manchas roxas pelo corpo, que eu  atribuia a lesões causadas pelas noites dormidas dentro do carro.
Minha mulher e meus filhos insistiam para que eu fosse ao médico investigar a causa das manchas. Na segunda feira pela manhã ao invés de iniciar o meu trabalho na nova empresa fui ao posto de saúde. O médico examinou-me meio à distância, fez algumas perguntas, preencheu o prontuário e fez o diagnóstico. O senhor tem  pedras nos rins. Isso provoca o inchaço e o desconforto. Quanto às manchas na pele devem ter origem em problemas hepáticos. Menos mal, pensei. Passou-me uma receita de medicamentos que logo comprei com meu minguado dinheiro da viagem, e iniciei imediatamente o tratamento. Depois comecei a jornada de visitas à clientela. Só que agora que eu estava alerta, o caroço me incomodava cada vez mais. Na terça estava ainda   maior, e na quarta voltei ao posto de saúde do Bairro da Velha em Blumenau, onde fui atendido pelo mesmo médico.
                               -Dr. Me desculpe haver retornado tão depressa, mas preciso de um melhor diagnóstico. Quem sabe uma radiografia. Já tive crises renais e tenho certeza de que os sintomas são muito diferentes. Temo estar com um câncer no estômago. O médico sorriu e me solicitou um hemograma, que colhi logo depois num laboratório ali perto, e apanhei o resultado na manhã seguinte. Abri o envelope e resultado saltou à minha frente: 
Leucócitos 136.000. Acabara a dúvida. Eu já havia identificado a leucemia. Me restava voltar ao médico para ouvir o resto da sentença. Fui ao posto de saúde e tomei lugar na fila para triagem, mas o médico quando me viu mostrou-se mais preocupado que eu. O laboratório já havia lhe encaminhado o resultado do hemograma.Me apanhou pelo braço e me conduziu ao consultório cheio de desculpas pelo erro do primeiro diagnóstico. Preencheu formulários e requisições, depois me encaminhou ao ambulatório da Faculdade de Medicina de Blumenau, à procura do Dr. Delsom, hematologista. Lá, atendido pelo citado médico fui esclarecido sobre a doença que me acometera. Tratava-se possivelmente de uma Leucemia. Porém tudo era ainda impreciso. Uma simples contagem de leucócitos não seria nenhum diagnóstico definitivo. Colheu-me um novo hemograma, que agora seria mais completo com a contagem de todos os subgrupos dentro dos leucócitos. Isso precisaria o tipo da patologia. 
                            Na manhã seguinte com o novo hemograma em mãos o Dr. Delsom passou-me o diagnóstico correto:
                            -O Sr. É portador de uma LMC (Leucemia   Mielóide Crônica). Esse não é um dos tipos mais agressivos de leucemia, e geralmente, mediante um bom tratamento garante ao paciente algum tempo até bem razoável de sobrevida, com uma boa qualidade de vida. Não vou dar-lhe mais detalhes porque o senhor não será tratado aqui, mas em Florianópolis, onde todos os detalhes lhe serão passados após a realização de um exame chamado cariótipo, que deverá confirmar uma mutação genética nos cromossomos de sua medula óssea, denominada   mutação 9:22. Tudo mais ou menos claro. Já ta bom.
                           Fui para a casa e coloquei todos os fatos diante de minha família, que assustou-se a princípio diante da palavra leucemia, mas aos poucos diante de minha calma e serenidade acomodou-se. O início do tratamento sepultou prematuramente o trabalho para a nova empresa.
                           Logo nos dias seguintes uma médica no Cepon em Florianópolis estabeleceu os novos limites de minha sobrevivência. Diante de um calhamaço de exames em sua mesa, desde cocô e xixi até HIV e o tal cariótipo, disparou:
                            Sr. Valter, sou sua médica daqui para a frente, e vou tratar de sua doença. Ela é do tipo crônico e de uma agressividade mais moderada. O resto de sua saúde é muito boa. O sistema cárdio-respiratório é perfeito e o senhor não é portador de nenhuma outra moléstia. Com o uso dos medicamentos que dispomos hoje (Inteferon-Alfa), posso lhe assegurar pelo menos tres anos de sobrevida com boa qualidade. Isso se o senhor seguir o tratamento à risca, e nenhum outro mal lhe        acometer.  Ta bom.
                            Peguei o ônibus de volta a Blumenau, e durante a viagem meditava muito. Não com desespero, nem com qualquer revolta. Procurava apenas avaliar os acontecimentos para traçar novas metas, estabelecer novos caminhos. Pensava muito nas perdas que a vida me impusera ao longo dos últimos anos, e agora chegava à conclusão que a elas se somavam mais duas que me enchiam de angústia e me entristeciam. Primeiro, eu tinha 46 anos, e jamais teria os cabelos brancos da velhice. Isso me pareceu significar uma parte muito prazerosa da vida, uma perda lastimável. Segundo, eu jamais ouviria um netinho me chamando de vovô. Isso doeu muito dentro de minha alma. Chorei em silêncio. Basta!
                             Agora estou rindo sozinho em meu quarto de hospital, e acho que minha mulher que me acompanha não esta entendendo nada. Hoje não estou na cama, mas numa confortável  poltrona, embora com a perna ainda inchada e dolorida. Estou alegre com essas recordações e enquanto isso meu netinho, o periquitinho do vovô corre e se esbalda pelas praias de Camboriú. Logo estará de volta, fazendo mais alegre o meu viver. 
                              Ah! Como Deus mora dentro do meu coração de criança!


                              Fiquei hospitalizado por 16 dias, e tive alta no início da noite de 31 de dezembro, quando pipocavam os primeiros fogos comemorando a chegada do ano novo. Isso depois de uma concessão muito especial do Dr. Carlos Eduardo Miguel, que pretendia me liberar apenas dois dias depois. Me comprometi em manter a mesma conduta utilizada no hospital, o mesmo repouso e constantes compressas de gelo sobre o joelho traumatizado, podendo assim vir passar o ano novo em casa. 
                               A permanência no hospital estava ficando "pesada" nos últimos dias. As plaquetas subiram, a hemoglobina também, de maneira que me sentia bem, apesar da perna muito roxa e dolorida. O mesmo acontecia com os braços cheios de hematomas como testemunhas dos dias difíceis pelos quais passei.
                               Voltei para a casa na cadeira de rodas, já que não apoiava o pé direito no chão. Por mais um mês continuei com ela, indo desde o banheiro, ao banco, ao médico, e até ao bar  para a cervejinha da sexta feira, e o bate papo com os amigos.Por uma semana desci da cadeira e caminhei dentro de casa, sempre apoiado em  algum objeto, até que ao descer um pequeno degrau a perna direita cedeu e curvou-se. Só me sentei no chão, sem cair, e logo me levantei; mas a forçada que dei na dobra do joelho voltou a me causar uma lesão, e na manhã seguinte o joelho estava novamente  inchado e doendo muito. Voltei por mais um mês para a cama e para a cadeira de rodas.
                               Cem dias depois da tragédia anunciada, continuo caminhando com bastante dificuldade, sem muita confiança em apoiar o peso do corpo sobre o joelho machucado; mas o importante é que caminho e continuo me recuperando. Os exames de sangue tem sido bons e a leucemia parece ter se acomodado novamente.
                               O tempo de convalescência foi bastante longo, e me deu a oportunidade de meditar muito sobre os acontecimentos. Agora, quase curado e sem a debilidade física e mental. Percebo o quanto preciso viver melhor o meu cada vez menor tempo de  sobre vida. E o quanto isso é difícil. Como a maioria dos seres humanos, sou conservador, egocêntrico e cheio de verdades para dizer mas muito pouco aprendizado para aplicar em minha vida. De volta ao lar tenho os mesmos velhos compromissos, os mesmos velhos rancores e as mesmas velhas raízes que sempre firmaram essa velha árvore à mercê de tantas tempestades. A gente tem medo do novo, e se acovarda diante da necessidade de mudanças. Sei que preciso deixar de tentar mudar as outras pessoas, e promover as mudanças dentro de mim mesmo. Tomara que eu consiga a partir de minha recuperação, tomar decisões mais sábias e aplicá-las com maior firmeza no meu viver. Ser um ser humano melhor, mais digno, e mais crente naquilo que tenho no comando de minhas vontades.                               Desde que adoeci, e durante as fases mais difíceis que me foram impostas pela doença, jamais deixei de ter fé e de acreditar que posso sobreviver a muitas catástrofes. Que Deus acompanha os meus passos, e esta comigo, na forma que eu o concebo dentro de mim, dentro de minha alma. E permite que eu passe por todos esses caminhos difíceis, e não compete a mim compreender  porque essas coisas acontecem em nossas vidas. Por isso nunca tive vontade nem coragem de implorar por nenhum milagre. Nunca rezei, nem orei, solicitando nenhuma cura. Deus me conhece e conhece os meus caminhos, fazendo com que eu percorra a distância e o itinerário que Ele determinar. Peço apenas que cuide muito bem de minha alma. Ele mora dentro do meu coração de menino.

3 comentários:

  1. COMOVENTE, EMOCIONANTE E DE UMA LEVEZA EXTRAORDINARIA,O AUTOR CONSEGUE SENSIBILIZAR O LEITOR SEM QUE ELE SINTA QUALQUER TIPO DE PENA E AIDA MOSTRA QUE NUM MOMENTO DIFICIL DE SUA VIDA ELE AINDA CONSEGUE UMA BUSCA INTERIOR E O REENCONTRO COM SEU EU. PARABENS VALTER SOU SUA FÃ ABRAÇOS.

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